terça-feira, 20 de agosto de 2019



CALDO VERDE

Alguns anos atrás uma amiga me falou que eu deveria escrever um blog e eu que desde criança sonhei (e ainda sonho) em ser escritor achei que seria uma ótima experiência. Acontece que, também desde criança, eu me construí enquanto uma criatura relativamente prática para certas questões (sobretudo no que diz respeito a não fazer absolutamente nada que me pareça desnecessário) e naquele exato momento os blogs pessoais começavam a declinar e cair em desuso frente ao avanço dos vlogs, que se constituíram como uma linguagem absolutamente popular e, provavelmente por sua fácil absorção, assumiram rapidamente o papel de cronistas do cotidiano, papel que antes foi brevemente ocupado pelos blogs, uma vez que estes ascenderam a partir do declínio da popularidade dos jornais e revistas impressos onde primariamente eram publicados os textos breves e agradavelmente ácidos redigidos por indivíduos geralmente egocêntricos que frequentemente utilizavam a sua própria vida como medida para o entendimento de todo o cosmos social. Em menos de 20 anos os blogs tornaram-se obsoletos no feérico mundo virtual e eu, julgando desnecessária a persistência da minha atuação em uma plataforma absolutamente textual, perdida em um ambiente onde as mídias visuais expandiram seu domínio absoluto, deixei de lado o meu bloguinho e fui viver a minha vida.

Muitos anos depois, em um breve momento de epifania, após ler um texto filosófico absolutamente intrincado e pouco compreensível e maratonar todos os documentários sobre artistas e fashion designers disponível na Netflix (porque um texto filosófico não teria mesmo potência para me causar, nem de leve, uma epifania) cheguei a conclusão que escrever, para a internet, ou para um jornal impresso, ou para uma publicação de uma editora de baixa tiragem, ou para onde quer que se escreva, é uma atitude absolutamente necessária, justamente porque vivemos em um mundo de informações supérfluas, e mesmo os melhores vlogueiros, aqueles que nos trazem discursos maravilhos, capazes até de redefinir algumas das nossas bases, não podem oferecer em suas falas uma experiência que é própria da dinâmica leitura/escrita, e certamente algum teórico da linguagem já deve ter escrito uma tese (porque é isso que os teóricos fazem) sobre esta relação absolutamente particular que possuímos com o texto escrito.

Diferente de outros modos textuais a escrita oferece uma coisa difícil de descrever, mas é algo que após a leitura fica conosco enquanto vamos até a cozinha descascar batatas, e a medida em que cortamos as batatas em cubos, enquanto a água começa a ferver na panela, as palavras vão colidindo uma com as outras, esbarrando em imagens que guardamos na memória e em memórias que não possuem imagens. Depois, enquanto cortamos a couve em fatias finas como serifas, a delicadeza das letras vai se entranhando ela própria em nossa memória. Caso tenhamos lido algo absolutamente perturbador ou irritante torna-se ideal que pensemos com afinco nesse texto enquanto cortamos a cebola (a raiva nos ajuda apersistir no exercício de dilaceramento do vegetal, ainda que aos prantos) e depois esmagamos os dentes de alho e cortamos as linguiças em pedaços generosos, nesse momento as palavras vibram em nosso pensamento, mas em seguida refogamos a cebola em fogo brando, pois o calor excessivo faz com que ela queime antes de ficar dourada, e quando acrescentamos o alho as palavras já estão amolecidas assim como as batatas cozidas que levamos ao liquidificador e trituramos com a água do próprio cozimento fazendo com que assumam o aspecto cremoso que se torna uma sopa saborosa já no encontro com o refogado, mas ainda falta o mais precioso do processo, o refinamento do tempero: um pouco de pimenta do reino, um pouco de pimenta calabresa, as folhas de couve, sal, cominho, e pode haver também um segredo de alecrim, (isso significa o suficiente para que ninguém perceba que você colocou, assim como ninguém nunca sabe ao certo o que a outra pessoa está lendo, já que cada interpretação de texto tem um tempero peculiar que parte da individualidade do leitor.) Por fim, acrescentamos o cheiro verde e nesse momento as palavras já estão esmaecendo dentro da gente e vão se tornando parte de nossa existência enquanto digerimos lentamente a nossa sopa.